O Observatório da Temática Indígena na América Latina (OBIAL) vem a público manifestar preocupação com os acontecimentos envolvendo a comunidade indígena Kaingang na TI Rio das Cobras, Paraná, em especial com a postura omissa da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). De acordo com lideranças locais, após os Kaingang saquearem uma carga de um caminhão acidentado na rodovia BR 277, que corta a Terra Indígena, no último dia 11, quatro Kaingang foram presos acusados de furto. Com a ampla exposição na mídia, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) adentrou a Terra Indígena, sem autorização da autoridade local, e prendeu outras pessoas. O fato revoltou a comunidade, que reagiu impedindo a prisão, resultando em conflito entre indígenas e PRF. Logo uma onda de manifestações racistas e preconceituosas se voltaram contra os indígenas. No dia 18 de novembro, o canal CGN Notícias (https://cgn.inf.br/.../indigenas-sao-perfeitamente.../amp) publicou a manifestação do presidente da Funai Marcelo Xavier. Pela nota, Xavier manifesta desconhecimento total da literatura antropológica e etno-histórica, ao afirmar que os Kaingang “possuem grau de aculturamento e estágio adequado de compreensão dos hábitos da sociedade nacional”. É importante esclarecer que o conceito de aculturamento empregado em tal argumento é totalmente anacrônico. Os Kaingang não apenas conhecem os hábitos da sociedade nacional como sabem da inoperância do órgão indigenista federal (Funai) e dos órgãos estaduais, e por isso precisam agir por conta própria - não se trata de desconhecimento, mas da necessidade de agir diante da inércia do Estado. Argumenta Marcelo que os indígenas devem responder pelos seus atos por não serem mais tutelados. Ocorre que foi justamente pelo regime tutelar que a Funai autorizou a construção da rodovia BR-277 na Terra Indígena, sem o consentimento livre dos indígenas, trazendo impactos negativos cumulativos de todas as ordens. O presidente da Funai faz questão de dizer que o órgão indigenista “não pode coadunar com nenhum tipo de conduta ilícita”, porém não manifesta qualquer repúdio à violência sofrida pelos indígenas. A exemplo do período militar, o presidente se omite da defesa dos indígenas, atribuindo a eles a própria violência que eles sofreram e sofrem. Não é possível compreender o caso ocorrido no dia 11 de novembro e os desdobramentos do dia 17 sem compreender a dimensão história do problema. Em 1969 a Funai autorizou a construção de uma rodovia federal na minúscula terra Kaingang de Rio das Cobras, sem que esses indígenas recebessem qualquer indenização, mitigação ou reparação. A tutela exercida pela Funai não permitia que os indígenas se manifestassem. A rodovia, ao longo desses 50 anos, vem provocando ao menos uma morte por atropelamento de indígenas a cada dois meses, sem considerar os que ficam com sequelas permanentes devido aos acidentes. De 2014 a 2019, os jornais noticiaram mais de 30 vítimas indígenas, segundo o levantamento do relatório de violência do Conselho Indigenista Missionário - Cimi. Por ser um trecho sinuoso e íngreme, os acidentes são frequentes. Produtos químicos contaminam o solo, a água, matam animais, afetam pessoas e nenhuma providência foi tomada. Segundo líderes Kaingang a água do riacho que corta a rodovia está imprópria para qualquer uso, devido à contaminação provocada pela rodovia. A poluição da área por monóxido de carbono expelido em grande quantidade pelos veículos torna o ar nas margens da estrada, local de moradia e escola, insuportável para respiração. A poluição sonora gera estresse permanente num povo que não pediu a estrada na porta de suas casas. Além disso, jamais foi construída uma passarela, passagem subterrânea ou mesmo uma via paralela para tráfego local, obrigando os indígenas a utilizar o leito da rodovia e expondo-os a riscos permanentes. Há mais de 20 anos a estrada é administrada por uma empresa privada, que cobra altos valores de pedágio sem oferecer segurança para a comunidade. Os Kaingang perderam terras, vida, saúde e tranquilidade em benefício de alguns poucos que lucram pela estrada. Sequer os motoristas se beneficiam, porque são obrigados a pagar altos pedágios sem que a via seja duplicada. Esse contexto não pode ser menosprezado pelas autoridades locais, regionais, nacional, muito menos pelo Presidente da Funai, cujo órgão que administra foi o grande responsável pelo contexto que se encontra atualmente. Esperava-se do presidente da Funai uma postura contextualizada, contemplando o contexto histórico da violência do Estado tutor, exercida pelo próprio órgão indigenista, e uma orientação adequada aos órgãos responsáveis, buscando solucionar o problema, e não se eximindo de uma responsabilidade que é sua. É importante esclarecer que não foram os Kaingang os responsáveis pelo acidente e pela morte, mas a concessionária do pedágio e o governo federal que não deram condições de segurança aos usuários da rodovia. Porém, percebe-se que é mais fácil culpar os Kaingang que assumir a responsabilidade. O OBIAL conclama as autoridades responsáveis para que busquem soluções para o caso, inclusive removendo a rodovia do local se for o caso, mas que a comunidade indígena seja ouvida e, se for para manter a rodovia no local, que seja duplicada, que os Kaingang sejam mitigados permanentemente pelo uso de suas terras e impactos ambientais e que obras complementares de segurança para os indígenas sejam construídas, para que a comunidade indígena tenha mais segurança.
Foz do Iguaçu, 20 de novembro de 2020
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